Segunda-feira, 1 Julho, 2024
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QUÉNIA: Improvável que Ruto satisfaça manifestantes

Por Jornal Notícias
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Kathleen Klaus*

NUMA medida que chocou os observadores, o Presidente do Quénia, William Ruto, anunciou, a 26 de Junho, que iria retirar a altamente controversa lei financeira do seu governo. Isto seguiu-se a dois dias em que dezenas de milhares de manifestantes, na sua maioria jovens, saíram às ruas em manifestações nacionais contra as propostas contidas no orçamento do país para 2024. Kathleen Klaus, que estudou a violência política no Quénia, revela o que motivou os manifestantes.

AUMENTO DOS PREÇOS DESENCADEOU PROTESTOS?

Aumentos acentuados nos bens de subsistência, especialmente alimentos e combustível, servem frequentemente como gatilho para protestos e agitação social. Isto foi documentado por vários estudos académicos.

Existem numerosos exemplos recentes, desde os protestos na Tunísia que desencadearam a Primavera Árabe, até às revoltas no Chile, na África do Sul e em França.

No entanto, tal como noutros lugares, o aumento dos preços – e as perspectivas de custos ainda mais elevados – são apenas parte da história no Quénia. O que parece ter motivado uma indignação tão generalizada e uma acção colectiva prende-se com quatro questões fundamentais.

Primeiro, o que está a ser tributado é importante, tanto material como simbolicamente. Os impostos propostos teriam afectado todos os segmentos da sociedade. Mas teriam sido sentidos de forma mais intensa pelas pessoas pobres e da classe trabalhadora. O projecto de lei propunha tributar tudo, desde o rendimento e o combustível até itens essenciais como ovos, produtos higiénicos e fraldas descartáveis – embora as alterações tenham removido os impostos sobre produtos higiénicose fraldas descartáveis.

Os aumentos de impostos propostos também deveriam aumentar os custos de saúde. Os criadores de conteúdo digital também teriam sido afectados.

O aumento dos impostos sobre estes bens mais íntimos e essenciais representa a indiferença do governo relativamente à capacidade dos quenianos de viverem uma vida digna.

Em segundo lugar, o governo justificou o imposto como uma forma de pagar a dívida nacional, que actualmente é de 68% do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, para muitos quenianos, a resolução do défice não depende da tributação, mas sim da resolução da corrupção desenfreada a todos os níveis do governo, da má gestão financeira e do consumo excessivo entre as elites políticas. Isto inclui um sentimento cada vez mais profundo de indignação face aos hábitos de consumo de Ruto – como o aluguer de jactos privados para viagens globais, um jantar de oito pratos para o rei Carlos III e o amor por relógios caros e outros produtos da moda.

Terceiro, muitos quenianos sentiram que a lei financeira, que foi aprovada com o apoio de 195 dos 304 membros do parlamento a 25 de Junho, desconsiderava completamente a sua dignidade. Na sua opinião, também mostrou uma incapacidade ou recusa por parte das elites políticas em reconhecer a precariedade económica, a pobreza opressiva e a luta quotidiana que muitos enfrentam.

Conforme explicou uma mulher, citada pelo New York Times: “É como se (os políticos) não sentissem a nossa dor”.

Além disso, a lei financeira pareceu uma traição para as pessoas que votaram em Ruto nas eleições de 2022 com base nos seus apelos aos pobres, bem como nas promessas de tributação progressiva.

Quarto, os manifestantes também foram motivados pela tentativa brutal do governo de reprimir a revolta. A determinação de muitos manifestantes aprofundou-se à medida que a polícia e os militares se tornaram mais violentos – alegadamente disparando balas reais e gás lacrimogéneo contra as multidões. Pelo menos 22 pessoas foram mortas.

A narrativa e as mensagens mudaram em resposta à violência do Estado. A convocatória passou a marchar pela liberdade e homenagear os quenianos mortos pela polícia.

QUESTÕES ANTIGAS NÃO RESOLVIDAS POR TRÁS DA AGITAÇÃO?

Várias questões subjacentes e não resolvidas ajudam a explicar o poder e a escala dos protestos anti-impostos.

A primeira, como mencionado anteriormente, é uma longa história de desrespeito do governo pelas vidas dos quenianos. Vários movimentos sociais captaram este sentimento, especialmente nas redes sociais. Eles variam entre: raiva pela impunidade da repressão policial; falha em abordar a violência baseada no género; despreparo e resposta lenta durante emergências nacionais, como as cheias devastadoras de Abril, que mataram mais de 291 pessoas; e a disposição dos políticos de alimentar divisões étnicas e encorajar a violência para seu próprio ganho político.

Uma segunda questão, relacionada, é a percepção da ganância da classe política, incluindo décadas de escândalos de corrupção de alto perfil que permanecem em grande parte sem controlo – escândalos que exacerbam a dívida nacional, mas também negam aos quenianos melhorias críticas e prometidas nas infra-estruturas e uma melhor prestação de serviços.

Esta questão é agravada pela frustração de longa data com a (má) gestão dos fundos públicos e pela incapacidade dos quenianos de responsabilizar os seus líderes.

Estas frustrações estão associadas a uma desigualdade económica profunda e duradoura, enraizada no domínio colonial dos colonos, que deixou grande parte da população sem terra. Até hoje, apenas algumas famílias quenianas possuem uma vasta parte das terras aráveis do país. Em 2022, os 10% doa quenianos mais ricos dos detinham 48,5% da riqueza do país.

A desigualdade persistente, que aumentou ligeiramente entre 2020-21, também abrandou as taxas de redução da pobreza, com a taxa de pobreza a aumentar quase 7% entre 2015 e 2021.

CONSEQUÊNCIAS ECONÓMICAS?

Os protestos sinalizaram, tanto ao governo como aos credores internacionais, que há pouca tolerância e espaço político para aumentar as receitas através de impostos regressivos – aqueles que impõem um fardo mais elevado aos trabalhadores com baixos rendimentos do que aos que auferem rendimentos elevados.

Da mesma forma, sinaliza uma crescente intolerância pública à corrupção.

Finalmente, o facto de os protestos terem persuadido Ruto a retirar a Lei das Finanças sinaliza uma sociedade civil capacitada e encorajada – uma sociedade que poderá ser capaz de continuar a pressionar por uma maior transparência financeira e responsabilização por parte dos seus líderes. Embora seja improvável uma mudança dramática, as perspectivas de agitação generalizada podem obrigar os líderes políticos a estarem mais sintonizados com o interesse público, uma mudança que poderá eventualmente levar a políticas económicas mais inclusivas.

*Professor Associado, Universidade de Uppsala

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