Quinta-feira, 19 Setembro, 2024
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DIGNIDADE E DIREITOS (177): (Herança, solidariedade-protecção familiar e a dignidade)

Por Jornal Notícias
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Episódio social: antes de partida para a eternidade, certo pai decidiu explicar à família o que, para ele, seria o seguimento do seu vasto património no caso de morte. Dentre o que determinou como mapa distributivo pela família, dois filhos, maiores, com razoável autonomia económica, foram excluídos. O progenitor considerou a conduta dos referidos filhos alagada de irreverência, desobediência ao seu esquema disciplinar e ausência injustificada em cruciais momentos familiares.

Hoje, verificada a partida do progenitor para a eternidade, a família se digladia em duas facções, havendo quem defende o escrupuloso cumprimento da última vontade expressa pelo falecido e outros, incluindo os ditos filhos, pretendendo usar os meios legais aplicáveis para que a herança contemple aos que, pela lei, gozem da devida capacidade.

A discutir, o posicionamento normativo perante a situação descrita num filtro oscilando os direitos e a dignidade humana.

Discutindo    

A família é o factor de socialização da pessoa humana e enquanto instituição jurídica, constitui o espaço privilegiado no qual se cria, desenvolve e consolida a personalidade dos seus membros e onde devem ser cultivados o diálogo e a entreajuda. A exposição que antecede foi extraída do artigo 1.º da Lei da Família e revela a responsabilidade decorrente da integração do indivíduo num grupo familiar. Efectivamente, adiante se decifra, pelo artigo 290 da mesma lei, que pais e filhos devem-se mutuamente respeito, cooperação, auxílio e assistência. Durante a menoridade dos filhos, os pais têm um direito-dever de garantir o seu crescimento harmonioso e , noutra banda, os filhos têm o especial dever de estimar, obedecer, respeitar e ajudar os pais e demais familiares, sendo que os filhos maiores têm o dever de concorrer para a manutenção dos pais, sempre que estes se encontrem em situação de necessidade.

O Direito Sucessório regula o esquema distributivo da herança com base justificativa das responsabilidades familiares. Esta realidade secular no sistema nosso de matriz romana, tem na família todo o fundamento para a razão de produção da riqueza individual, sendo, por isso, de peso significativo as normas jurídicas que limitam a liberdade testamentária.

Na realidade jurídica de orientação inglesa, por exemplo, existe uma ampla liberdade de testar e não se conhecem figuras como a legítima de filhos e cônjuge, ou seja, o pai poderá excluir a quem quiser na sua declaração patrimonial de última vontade.

Na Inglaterra, uma lei da herança (Inheritance Act: provision for family and dependants) de 1975, em vigor ainda, apenas permite que familiares dependentes do falecido possam requerer quantia para a sua sobrevivência, dos bens do falecido. Trata-se de um direito de alimentos para a manutenção do padrão semelhante ao período anterior ao óbito do dono do património se, os requerentes vivessem sob a sua dependência demonstrando, em tribunal, não possuírem condições financeiras para se sustentarem e sejam incapacitados para trabalhar.

No nosso campo jurídico, a família é a privilegiada destinatária do património da herança, e existe, conforme se estipula nos artigos 136 e 137 da Lei das Sucessões, uma porção de bens de que o testador não pode dispor a terceiros, por ser legalmente destinada aos descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro da união de facto.

O afastamento do grupo familiar acima referido, só pode decorrer de circunstâncias taxativamente indicadas na lei.

Do artigo 145 da Lei das Sucessões se extrai a figura de deserdação ou seja a privação voluntária do direito  à herança pelo seu autor ( neste caso o progenitor), pela condenação do sucessível por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do  referido autor da herança, ou do seu cônjuge ou companheiro da união de facto, ou de algum descendente, ascendente, adoptante ou adoptado, desde que o crime corresponda a pena superior a seis meses de prisão. Como se nota, numa primeira dimensão, a exclusão de alguém, pela vontade, tem restrição justificativa na lei e associa-se a uma atitude verificada pelo tribunal revelando crime no seio familiar.

Ainda na mesma disposição, a exclusão de herdeiro pode ser fundada na recusa deste, sem justa causa, ao autor da herança, ao seu cônjuge ou companheiro da união de facto, os devidos alimentos (entende-se, alimentação e assistência).

Em conclusão, e reenviados ao episódio inicial, os dois filhos não desejados pelo progenitor, só poderiam ficar fora do mapa distributivo provando-se as matérias referidas acima.

O retrato legal vigente se mostra lacunoso ao não prever outras circunstâncias violadoras dos deveres familiares como fundamento para a prevalência da vontade do dono do património. O abandono afectivo e a indiferença para com os assuntos familiares por pessoas com mínima capacidade de sobrevivência, deveria ser um tema de peso para evitar de todo, um aproveitamento das facilidades da lei pontapeando a mais elementar razão do tecido humano: respeito pela dignidade. Alguém se afasta de todos e de tudo familiar, aparecendo para colher a herança!

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