Quinta-feira, 19 Dezembro, 2024
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BELAS MEMÓRIAS: O ovo não se parte, pai! (3)

Por Jornal Notícias
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O SEMBLANTE de um menino com peso de consciência denuncia-se com muita facilidade e com o Vadinho, o vendedor de ovos cozidos na rua, não foi diferente.

No dia da sua estreia na venda regressou à casa com o rosto semelhante às nuvens carregadas, anunciando um dia de grande queda pluviométrica.

Os seus bolsos estavam gordos porque continham saquetas pretas bem amarradas de dinheiro das vendas. Contudo, a Madu, sua patroa, não viu com bons olhos todos esses sinais de mau tempo.

Vadinho aproximou-se e entregou todo o dinheiro à patroa. Acontece, porém, que esta não precisa que lhe diga quanto dinheiro fez porque está abalizada na matéria. Sabe de olhos fechados quanto representa cada quantidade de ovos entregues a um vendedor.

Pode-me passar os trinta meticais em falta? Incrédulo, Vadinho olhou para os lados. Vieram-lhe em mente todos os cenários que foi desenhando durante a viagem sobre a a possível reacção da patroa. Será que ela correrá comigo, sem ter recebido um salário sequer? Esta e outras perguntas surgiram-lhe em fracção de segundos.

Respondeu que todo o dinheiro feito era somente aquele.

– E o dos dois ovos em falta?

Porque não fazia parte de si roubar, mentir ou omitir, Vadinho não levou muito tempo para confessar.

– Já se fazia demasiadamente tarde e não tinha comido nada. Decidi comer dois ovos para me aguentar.

A patroa respondeu-lhe que a refeição do dia já tinha sido tomada, desde o momento que ele comeu os ovos e que podia recolher ao dormitório para o descanso, de modo a continuar a marcha no dia seguinte. E assim foi. Enquanto uns contavam-se as peripécias do dia, Vadinho lavava o seu rosto com lágrimas, escorrendo continuamente mas em silêncio. Chorava por causa do incidente e também porque a fome tomava conta dele, ao mesmo tempo que fazia uma viagem no tempo e no espaço, recordando-se dos seus, em Nhametane, que àquela hora tinham tomado mais do que duas refeições, independentemente da qualidade. Sim, na comunidade de onde saiu em busca de melhores condições de vida já se tinha jantado àquela hora.

– Céus!Serão estas as melhores condições que eu procurava? Terá valido a pena deixar a minha família em troca deste sofrimento?

São perguntas que Vadinho não parava de se fazer a noite toda, entre intervalos de banhos de lágrimas e soluços, sem consolo, pois todos os seus colegas haviam sido tomados pelo sono.

O sono não tem escolha, quando chega embala até os inconsoláveis, à semelhança do menino. A noite foi longa e a madrugada também. Por tudo isto, o sono acabava por ser intermitente ao ponto de o jovem conseguir ouvir o canto do galo à milhas, mas o dia não despontava.

Finalmente, chegou a hora de se livrar do “acampamento”, onde o único companheiro que não o largava era o cheiro do ácido úrico de colegas que nas noites urinavam involuntariamente enquanto dormiam.

A chamada para a distribuição de tarefas começou e ao Vadinho coube mais um balde de ovos e com destino diferente do dia anterior. No lugar de iniciar o seu trabalho, apanhando “chapa”, foi a pé do Benfica até ao Alto-Maé.

A sorte bateu-lhe à porta logo pela manhã ao conseguir vender tudo. Regressou mais cedo à casa, na expectativa de ser servido pelo menos um prato de comida, tendo em conta a situação de jejum forçado em que se encontrava há cerca de 48 horas.

Acontece que a refeição é servida ao mesmo tempo a todos, invariavelmente à noite e ele não podia ter um tratamento especial. Durante as horas de espera, no seu rosto só vinha Nhametane, seus familiares, vizinhos e amigos, parte dos quais não se despediu, expectante em regressar em grande já como um homem forte, financeiramente (…) 

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