Sábado, 19 Abril, 2025
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DIGNIDADE E DIREITOS (192): Matrimónio tradicional, herança e a dignidade

Por Jornal Notícias
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Episódio de referência:   após longos anos de união polígama, as famílias de duas mulheres, companheiras do falecido homem, se digladiam, discutindo sobre o destino do seu vasto património.

Na essência da história, o falecido viveu uma década com a primeira companheira sob os vaticínios do ritual costumeiro de lobolo. Após se constatar que a mulher não poderia procriar, as famílias das duas partes acordaram em se lobolar mais uma mulher, por sinal, sobrinha da primeira e mais nova.

Ocorrida a morte do homem, a mulher mais velha e parte da família, entendem que a mais nova, mãe de três filhos, deve abandonar o espaço familiar seguindo, livremente, o seu destino. A mulher mais nova, aliada à sua própria família, aceita o posicionamento familiar referido, mas impõe condições, designadamente a partilha do património deixado pelo falecido.

Na mesa de debate se projecta avaliar os posicionamentos familiares expressos no episódio em face do quadro legal aplicável e tendo, sobretudo, em conta, o equilíbrio entre a lei e as ordens costumeiras que guiaram toda construção familiar alcançada.

Discutindo

O Direito positivo, no sentido de lei vigente, não é o único responsável pela regulação social, coexistindo outras ordens de influência significativa para a efectiva estabilidade das relações sociais.

A Constituição da República fixa no artigo 4 o princípio do pluralismo jurídico, visando acomodar outras ordens enraizadas na sociedade para a resolução de problemas sociais. Este princípio geral tem reflexo nas relações de família e com efeito, o artigo 4 da Lei da Família, expressa o acolhimento dos usos e costumes na solução de conflitos familiares, buscando-se os valores predominantes na organização sócio-familiar em que os conflituantes estão integrados.

Os parâmetros tanto da Constituição da República, como da Lei da Família, subordinam toda a valoração dos usos e costumes aos limites da ordem jurídica positiva, ou seja, não se permite resolver de modo contrário às leis vigentes.

Filtrando a base legal ao episódio, pode se verificar que a constituição poligâmica da família que regeu a vida do homem e as duas mulheres, gerou uma certa expectativa de solucionar o conflito iminente dentro da ordem costumeira.

A solução concertada pela família para que a mulher mais nova siga seu destino, abstendo-se da herança deixada pelo pai dos seus filhos com quem partilhou a vida em regime de poligamia, contraria o espírito das leis.

Embora a ordem legal só reconheça uma união matrimonial monogâmica, a tutela das companheiras poligâmicas está prevista na Lei das Sucessões. O artigo 88 do Diploma citado, acolhe a situação prevendo que tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo autor da sucessão quem, à data da morte deste se encontrasse a viver com ele em união polígama há mais de cinco anos e não se encontrasse separado de facto há mais de um ano.

Explicando de forma mais simples, as duas mulheres, porque não estavam unidas pelo matrimónio e não reuniam os requisitos da união de facto (pelo não reconhecimento legal da poligamia), não são herdeiras do património individual do falecido, mas poderão beneficiar-se dos rendimentos dos bens.

A protecção reflectida acima mostra-se precária e não nos parece estar a responder aos valores humanos de dignidade.  Tendo sido harmónico o convívio entre as duas mulheres e o falecido, questiona-se o afastamento delas do património da herança.

O cruzamento entre os valores costumeiros e a questão da dignidade humana, deve guiar o raciocínio nesta matéria. Apoia-se, em debate contínuo, uma ideia de um pluralismo jurídico genuíno, não devendo as leis servirem de obstáculo para se conceder uma base de sobrevivência a quem participou na construção de uma família.

Longe de discutir com profundidade o tema sobre a poligamia, a tutela patrimonial de quem viveu nesta condição (não tutelada por lei), se equaciona um factor de respeito da dignidade humana.


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