Quinta-feira, 5 Dezembro, 2024
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ATELIER DE LETRAS: A Última Oração do Judas (I)*

Por Jornal Notícias
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ALBERTO JOSÉ MATHE*

Universidade Save Ao ler “A Última Oração do Judas”, de Sakharari, somos atraídos por um espaço textual que se desdobra em múltiplas camadas de significado. Este livro vai além de uma simples colectânea de poemas; ele se apresenta como uma arena onde a linguagem luta contra suas próprias limitações. A última confissão de Judas nunca é verdadeiramente ouvida, manifestando-se como um grito mudo, simbolizando a impossibilidade de comunicar plenamente a experiência humana. Nesse sentido, Judas deixa de ser apenas uma figura histórica e se torna um símbolo que desarticula as estruturas tradicionais de pensamento sobre o bem e o mal.

O poeta convida o leitor a mergulhar em um jogo de palavras que se desenrola nas margens do silêncio, onde o que não é dito carrega um peso tão significativo quanto o que é dito. É o que se pode constatar na primeira secção do livro, intitulada “Queixumes e Labilidades do Judas”, na qual somos apresentados a um duplo movimento de desconstrução e recriação das figuras míticas e narrativas históricas. Nos poemas “Oração do Judas (I)” e “Oração do Judas (II)” reinventa-se o mito bíblico, deslocando-o para uma esfera colectiva e cosmológica, onde o sujeito poético busca tanto denunciar quanto reconstituir a experiência da traição e da redenção.

No primeiro poema, “Oração do Judas (I)”, o sujeito poético coloca-se como um profeta que clama por uma fraternidade que persiste mesmo diante da traição. A menção ao “Moisés” que surge do chicote sugere um processo de emancipação, onde a opressão perde seu poder e novos fluxos de esperança e resistência emergem. Entretanto, essa poesia está imersa em um paradoxo: a esperança convive com uma tragédia iminente. A promessa de redenção é acompanhada por criaturas medonhas e baionetas à flor da pele, refletindo a duplicidade entre libertação e queda.

No segundo poema, “Oração do Judas (II)”, essa incerteza se expande, lançando-nos a uma reflexão existencial e cosmológica. Judas se transforma em uma figura que habita o “multiverso”, dissolvendo as fronteiras entre vida e morte, realidade e ilusão. O traidor não é apenas aquele que entregou Cristo, mas uma entidade que permeia todos os aspectos da existência. A repetição da frase “há ainda Judas sim” ecoa a ideia de que figuras de poder se reinventam, lembrando da inércia do ser humano diante da ordem estabelecida. O convite para despertar ao “som deste poema” sugere a possibilidade de ruptura, uma nova linha de fuga que poderia subverter ciclos de traição e sofrimento.

Em “Será que nos abandonaste?”, Sakharari aprofunda a desconstrução das relações entre o sagrado e o profano, a tradição e a tecnologia, a fé e a alienação. A crise existencial do sujeito contemporâneo revela-se na busca por dignidade em um mundo desprovido de sentido. A migração das almas destaca que o deslocamento é espiritual, sugerindo uma desconexão com tradições que costumavam dar significado à vida.

Os poemas que compõem esta secção configuram-se como um convite à reflexão sobre dinâmicas de traição e redenção, explorando uma condição humana marcada pela dúvida, fragmentação e uma incessante busca por sentido. Assim, não se trata apenas de uma colecção de poemas, mas de um espaço de questionamento que nos impulsiona a ressignificar nossas compreensões sobre verdade e traição, um abismo que se revela em cada nova leitura.

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