Domingo, 28 Abril, 2024
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Cá da terra: Retalhada pela violência

Por admin-sn
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Osvaldo Gêmoosvaldoroque7103@gmail.com

TIO estou a pedir crédito…tio estou a pedir crédito- pedia com insistência uma mulher que se aproximou da janela do meu veículo.

Passava pouco das seis horas daquela manhã chuvosa e a via que uso com frequência registava àquela hora um engarrafamento danado. As poucas vezes que parecia haver um movimento não se andava mais do que um metro e meio e permanecemos ali no anda não anda e a máquina a sorver a gasosa sem parar.

Tio estou a pedir crédito- voltou a repetir a inusitada figura. Porque se tratava de um pedido pouco comum, a primeira reacção foi um espanto negligente, afinal estávamos em pleno 8 de Março e mal tinha me apercebido. Nesta data as mulheres merecem de tudo, incluindo fazer pedidos inusitados.

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Já refeito do espanto, olhei para a figura. Aquela mulher, ainda que desconhecida, pobre, esfolada, rejeitada, era mais importante do que todo o ouro do mundo, tão valiosa como a mais pura das mulheres. Era uma joia raríssima, que tinha sonhos, expectativas, lágrimas, golpes de ousadia, recuos, enfim, uma história fascinante, tão importante como a de qualquer mulher. Valia a pena correr riscos para satisfazê-la.

Tirei da carteira a única nota de cinquenta meticais que tinha na carteira e passei-a. É normal ouvir por entre os que se assomam as viaturas, quem peça dinheiro para comprar pão. São pessoas que aparentam força para mudar a sua situação, mas estão ali, a sobreviver da esmola.

O facto desta figura sinistra me ter solicitado crédito, chamou a minha atenção e dos que comigo viajavam.

Já não me interessava o que ela faria depois, se iria comprar ou não o crédito. Talvez estivesse aflita e uma chamada salvaria a sua vida. O dia passou e não parava de pensar naquela mulher que vestia retalhos de um vestido verde, bordado nas extremidades com tonalidades branco-douradas, que acomodavam um corpo lindo, esbelto e fascinante.

Muitas mulheres passaram por ali e não se reconheceram nela. Viram uma andrajosa, prostituta,  delinquente, mesmo à moda das modernas, cultas, urbanas, sofisticadas ou distanciadas da realidade.

Estamos a viver numa sociedade em que não conseguimos sequer amar a nós mesmos. Estamos a tornamo-nos mais um número de cartão de crédito, mais um consumidor potencial e mal olhamos para a dor do outro.

Não há um padrão para classificar as mulheres. Todas são igualmente belas,como aquela na qual os meus pensamentos continuavam firmes.

Pela cidade, são muitas as mulheres que suportam e cuidam das crianças. São milhares, sem o companheiro. Só elas e os filhos. Os homens estão a combater, outros tantos abandonaram o lar, quando não é a mulher que diz basta e parte com os seus rebentos.

Aquela mulher ali precisava de resgate. Estava só, desamparada. Parecia  ter sofrido violência. Àquela hora precisava de um empurrãozinho.  

Via uma mulher que toda a semana, exactamente, de segunda a sexta-feira, acordava cedo, com a sensação de que acabava de dormir. Saltava da cama, calçava sapatilhas de corrida, encarava a rotina íntima diária da casa, levava os filhos para a escola e partia rumo à orla ou ao parque mais próximo porque, afinal, tinha apenas 10 quilómetros pela frente antes de começar o dia de trabalho.

Já quase atrasada pegava o carro, ajeitava mais uma vez o penteado e retocava o batom. Notou pelo retrovisor que, apesar da idade, ainda se apresentava impecável. Fazia parte de um grupo que lutava por igualdade, respeito e reconhecimento. Era das mães que trabalhava incansavelmente para dar o melhor à família e que ensinava aos filhos a lutar pelos seus sonhos.

Talvez tudo isto tivesse feito parte da sua história. Ninguém sabe. Mas ali, desamparada, parecia mais uma modelo da rua, retalhada pela violência a quem temos tendência de olhar com indiferença.

O titubear alheio não nos interessa e mal vemos o inestimável valor que há em cada ser humano.

Não há quem diga vá em frente! A base fundamental da liberdade é a capacidade de escolha,que só é plena quando temos liberdade de escolher o que amamos. 

Aquela mulher estava ali, de mão estendida, sem escolha. O  que mais desejava era ter segurança, alimento e conforto. Tomara que o crédito possa de facto salvá-la.

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